Hoje, 02 de abril, fazemos memória de Fr. Estêvão Meiwes, OFM. Neste dia completam 27 anos de sua morte. Na época, Fr. Adolfo Temme, OFM escreveu uma cronica que agora compartilhamos com todos vocês.

Morte de frei Estêvão         

Ohrbeck, dia 20 de abril de 92

Meus caros irmãos na terra querida.

Quero me dirigir a todos vocês, confrades de frei Estêvão, paroquianos e amigos.

Vocês sofreram com a morte de longe. Eu estive com ele nos últimos dias e assisti o enterro. Quero ajudar a todos vocês para se consolar nesta dor. Hoje coloco na minha mesa alguns objetos que  ficaram: – uma maçã que estava na mesinha de cabeceira do confrade – o calendário do Coração de Jesus que parou no dia 2 de abril – o relógio que ainda não deixou de trabalhar – o restinho da vela que serviu para a última hora – a cópia da Oração de São Francisco, tão apreciada, – os óculos quebrados que no fim não serviam mais.

Realmente os óculos eram um grande problema nos últimos dias. Frei Estêvão ainda fez consulta para trocar as lentes. Mas logo em seguida ia chegar a visão celeste que dispensa as lentes. Antes de falar da morte, quero contar das últimas semanas. O confrade aceitou a informação sobre a gravidade da doença com muita coragem. Esta disposição edificou muita gente. Mas o homem de fé é um mortal como os outros: todo mundo ama a vida. Naqueles dias estudei um livro com o título: ENTREVISTA COM AGONIZANTES, onde a autora descreve cinco fases que antecedem a morte:

1. Negação da realidade 2. Revolta 3. Negociação com Deus 4. Depressão 5. Aceitação.  Todas estas fases pude observar no Frei Estêvão. Ele negou a realidade, quando falava do milagre da cura: “O câncer está vencido!” Ele ficou revoltado e exigia um tratamento de fisioterapia. Negociou com Deus por um prazo, quando dizia: “Afinal sou Vigário e tenho responsabilidade”. Apegou-se com novenas e devoções, rezou em Dellbrueck, sua terra natal, aos pés da santa Cruz e procurou durante semanas um hemopata na Holanda. Tudo isto em vão. O câncer não deu trégua. E Deus não interveio, como não interveio no caso do seu próprio Filho. Nesta fase, os visitantes não sabiam o que fazer. Frei Estêvão se ofendia, se a pessoa não acreditasse no “milagre” e dizia: “Vocês já me descartaram”. – O doente precisa de uma esperança para poder viver e busca qualquer taboa de salvação.

No dia 28 de março estive com o confrade. Ele ainda estava bem lúcido. Pediu para rezar o Ofício da Manhã. Quando a gente rezava e cantava, ele fazia um grande esforço para acompanhar. Depois interrompia para perguntar: Minha voz está saindo direito? Mesmo que a gente dissesse que sim, ele dizia: Não entendo mais este mundo! E seu olhar mostrava grande tristeza. Estêvão ocupava seus dias nas devoções e quase não dava conta. Ainda alcancei a visita de frei Haraldo que tinha o dever diário de rezar com ele a ORAÇÃO DE SÃO FRANCISCO, sempre no mesmo horário. Depois saí para visitar uma irmã minha.

No dia 30 de março eu vinha tarde da noite da visita do frei Valfrido que luta com a mesma doença. Não era mais hora de visitar ninguém, mas algum aviso me obrigou a passar por Warendorf, no convento onde frei Estêvão ficou. Lá encontrei Regina Pauka, amiga que deu muita assistência. Ela me disse que já tinha telefonado para mim. Frei Estêvão estava sem fala, e o médico não dava mais de 24 horas para ele. A partir de então Regina e eu nos revezamos na sentinela. Logo telefonei para o Brasil, para que os amigos se preparassem. Eu não podia falar com Frei Estêvão, mas rezei alto, porque o ouvido é o último que morre. Peguei o violão e abri o livro dos salmos: CANTAR A DEUS EM TERRA ESTRANHA. Cantei muito para consolar a ele e a mim: A ti invoco, Deus justo…Meu Deus, porque me abandonaste…Cai a tarde, vem a noite…O Senhor é o defensor da minha vida…Cantei também em alemão: NO MEIO DA VIDA CERCADOS DA MORTE…Assim passou a noite, Regina revezando comigo, e frei Estêvão viu o sol nascer outra vez.              

O dia 31 de março foi difícil. Na hora da missa, Estêvão recebeu uma parte da hóstia, mas já não conseguia engolir. Pelas 10 hs vinha um senhor que fazia fisioterapia com ele. Era uma tortura inútil, mas o doente fazia questão disto. Este senhor me disse ao virar a cabeça do paciente: o crânio está perto de sair fora. O tumor cresce rapidamente. – Ningúem de nós rezava mais para prolongar esta vida. Ainda bem que as dores eram suportáveis, já que o tumor tinha eliminado o centro que comanda as dores. Neste dia 31 frei Estêvão ficou perturbado. Sua luta contra a doença se levantou mais uma vez, quando falou: Quero sair daqui. Vou para o Brasil! Mais tarde, no meio das palavras confusas, ouvi direito quando dizia: Não posso fazer mais nada!

Na parte da tarde chegou um cunhado que havia projetado o novo carimbo da Paróquia de São José, a pedido de frei Estêvão. Depois de diversas correções, este carimbo ficou pronto naquele dia. A tarde toda, o enfermo lutou muito para dizer alguma coisa, mas a fala não era nem alemão nem português. A sua preocupação era o programa da TV que ele mudava toda hora no controle remoto. Quando havia passado por todos os programas de um a quatorze, começava de novo pelo primeiro. Até que uma cunhada falou: Ele está procurando algum programa que não é deste mundo.

No dia 1 de abril frei Estêvão recebeu uma injeção para acalmar. Na parte da manhã o rosto se iluminou diversas vezes, e ele dava a impressão de ter sonhos bonitos. Não faltavam parentes o dia todo. Certas horas ele conhecia as pessoas. De noite fiquei a primeira parte, rezando e cantando alto. Quando fui dormir, mostrei para Regina a vela e a oração para a hora extrema. Pelas 5,30 hs ela rezou alto o ofìcio da manhã e Estêvão ainda reagiu. Quando ela se atrapalhava com as páginas, ele parecia querer ajudar. Às 5 e 50 hs chegou frei Klaus (não o Finkam) Sentindo que a hora estava chegando, rezou: Jesus, sou todo teu… Frei Estêvão abriu os olhos bem consciente e viu uma coisa que os outros não viram. Depois respirou apenas duas vezes e morreu. Era 6 hs do dia 2 de abril e 92.

Logo em seguida Regina me chamou. Vim para rezar a oração da última viagem: “Vinde em meu encontro, anjos do Senhor…” Depois coloquei o violão no saco e veio a grande crise de choro.

Nestas alturas, Graça Rosa de Bacabal estava a caminho, com esperança de ver Frei Estêvão vivo. Mas só deu para assistir os funerais. O enterro estava marcado para o dia 7 de abril na cidade de Paderborn. Celebrei o REQUIEM junto com frei Eraldo e outros confrades. Frei Ronaldo, guardião da casa, explicou para a Comunidade, quem tinha sido frei Estêvão e como veio parar ali. Além de mim, quem representava o Brasil, era frei Valfredo e Graça Rosa. Esta tomou a palavra por meio de intérprete e falou com voz comovida: Quando cheguei na Alemanha dia 3, logo perguntei: Frei Estevão está vivo? A resposta foi uma grande dor. A quem vou entregar tantas cartas que os amigos mandaram por mim? Acho que os anjos vão ler para eles. Cuidei dele até a partida do Brasil e acompanhei sua grande luta. Estou na pátria dele sem saber falar nada. Mas eu trouxe um pouco do Brasil que ele tanto ama. Estêvão, já que você não pôde voltar ao Brasil, receba em minha pessoa todo amor que seu povo tem por você. – Na oração rezei: Em tuas mãos, Senhor, colocamos a vida e a morte de nosso irmão Estêvão, sua disposição de fazer a tua vontade. Recolhei em vossas mãos todos os frutos que sua vida produziu para o teu Reino de amor.

Para a leitura, escolhemos o relato da morte de Elias em 2 Reis 2, 1 a 18, onde o aluno Eliseu segue o Mestre ate o fim e dele consegue o manto de profeta, para poder continuar a mesma missão. O Evangelho era de Marcos 14, 32 – 42, onde Jesus agoniza no horto das Oliveiras. Na frente do altar havia um lindo jarro, ao qual me referi no sermão: Um grande tesouro em pote de barro. Quando o pote quebra, aparece o tesouro em toda beleza. No Santinho dos 25 anos de sacerdócio, frei Estêvão mandou desenhar 25 potes de barro. Neste ano, ele ia celebrar 25 de presença no Brasil. Agora quebrou o derradeiro pote, e nós podemos contemplar o conteúdo desta vida preciosa, embora frágil. Porquê quebrou este pote? Esta pergunta, só podemos dirigir ao grande Oleiro. Mas Ele não responde. Frei Estêvão perguntou: PORQUÊ? Dia 22 de dez lhe quebrou a voz na hora do sermão. Dia 24 de dez deixou a Paróquia como homem doente. Os paroquianos perguntaram: PORQUÊ? Na missa do Natal não viram mais o Vigário querido. A Província recém-criada perguntou: PORQUÊ? Há pouco haviam eleito o confrade como Definidor da nova entidade. Os parentes perguntam: PORQUÊ? Com lágrimas deixaram o irmão partir anos atrás. E eu pergunto como confrade: PORQUÊ? Ninguém sabe. Estêvão lutou muito por esta pergunta. Só recebeu a resposta, quando não pôde mais transmiti-la. Até Jesus perguntou assim. Porque devo partir com 33 anos? Jesus lutou desde a revolta até a entrega, entre três quedas.   

Estêvão sofreu três meses no Horto das Oliveiras. Lutou e negociou com Deus e aproveitou o tempo para realizar planos antigos. Do longínquo convento de Warendort telefonou muitas vezes, dando orientações pastorais. Fêz projetos com a parte do cérebro que ainda funcionava. Escreveu cartas com a esquerda que ainda lhe obedecia, cartas urgentes, dirigidas a pessoas que causavam preocupação ao pastor. Eram cartas com erros e lacunas do jeito que sua fala atrapalhada permitia. Tudo isto, ele ainda fez pessoalmente.

Quais eram seus últimos planos pastorais? Um Crucifixo em todas as salas de aula – Uma cerca viva ao redor da igreja em Lagoa Grande – A casa paroquial deve ser aumentada – A Comunhão deve ser  distribuída sob as duas espécies – A paróquia precisa de um novo carimbo.

Este carimbo ainda ficou pronto. Frei Estêvão escolheu como modelo São José em gesto de partida, lembrando sua disposição: Vai para Belém! Vai para o Egito! Volta para a Terra de Israel! Com este carimbo, é como se fosse frei Estêvão que ainda assina os batizados daqui em diante.

Nos últimos dias o confrade só falava com dificuldade, mas ainda disse coisas importantes que Regina Pauka gravou: Nem dez cavalos me seguram aqui. Quero voltar ao Brasil! – Ainda preciso escrever ao Valdir, que não respondeu. – Quero uma agenda completa, com tudo que acontece na Paróquia, para poder escrever na ocasião e rezar na intenção. – Também como homem doente posso fazer alguma coisa pela paróquia. Ainda sou Vigário e tenho obrigações. – Meu futuro está terminado. Sou um homem doente, mas vou vencer. E então estarei para sempre no Brasil. – Não posso fazer mais nada. – Não tenho medo de morrer. – Depois desta palavraseguiu um grande silêncio.

Nas Preces dos Fieis fizemos ardentes súplicas ao Senhor da Bondade:

Pelo nosso irmão Frei Estêvão, que seja acolhido para sempre no teu Amor

Pela Paróquia de Lago da Pedra, que siga no caminho do seu pastor

Pela Provincia de Bacabal, que seja consolada em sua dor

Por todos nós, que esta morte abra a cortina da gloria que nossos olhos não podem ver…

No Ofertório foram levados ao altar diversos símbolos: a Bíblia com a capa preta que fei Estêvão usou até o fim – o Breviário que teimou a rezar até o último dia – o carimbo que foi seu último projeto – japonesas que ele gostava de usar – um quadro de Simão Cirineu que ficou na parede do quarto – a última carta para um parente que ele não chegou a despachar – um Tau Franciscano que havia usado. Depois da Comunhão rezei a Oração de São Fancisco em Português, enquanto Regina e Graça davam as respostas.            

Depois da missa fomos ao cemitério, onde a última despedida foi celebrada na Capela funerária. Na hora de conduzir o caixão frei Valfredo (que seria o próximo a partir) pegou na alça da dianteira. O túmulo estava preparado no jazigo dos Franciscanos. O caixão desceu, e os frades jogaram um pouco de terra. Os parentes se apresentavam de dois em dois, jogando flores. A cunhada do Finado convidou Graça Rosa para se apresentar com ela. Foi nesta hora que a Brasileira deixou no túmulo a bandeira da Pátria querida e uma camisa com os dizeres: TANTA LUTA, TANTO PRANTO, FAZ ESCURO, MAS EU CANTO.

Assim ficou o corpo do irmão querido num cemitério bem zelado, no meio de tantos Franciscanos  perto da terra natal. Depois teve um almoço simples no Convento. Todo mundo queria saber mais alguma coisa sobre frei Estêvão. Muita gente achou importante esta celebração com sotaque brasileiro. Depois que os convidados saíram, um pequeno grupo foi mais uma vez ao cemitério: Regina, Graça, Maria Leistner e eu. Tinhamos a necessidade de demorar mais um pouco. Cantamos o Nr. 612 no CANTOS E ORAÇÕES: Os que dormem nos sepulcros tornarão a ver a luz…A terra já tinha sido ajeitada, e o túmulo estava cheiro de flores e coroas.

Quando Graça e eu andávamos pelo centro da cidade, um cidadão nos abordou, dizendo: “Eu vi vocês na missa. Sou amigo do finado”. Ele mostrou uma casa e explicou: “Foi alí que Frei Estêvão estudou o ginásio, e logo ao lado, na casa de minha mãe, ele tomava a merenda do recreio. Desde menino era uma pessoa alegre e bondosa”. No caminho de volta ainda visitamos a matriz de Dell brueck, onde frei Estêvão foi batizado. Aos pés da Santa Cruz acendemos uma vela para ele. Desde então eu me pergunto: Onde está o meu irmão? Nos últimos dias ele confundiu “céu” e “Brasil”. Será que foi de propósito? “Estarei para sempre no Brasil”. Certamente ele está no meio daqueles que o amam e a quem ele ama. Mas, fazer do Brasil um céu, isto é tarefa nossa. Que frei Estêvão nos ajude. Para consolar vocês, eu fiz uns retratos impressionantes, quando o morto já estava preparado. A expressão do rosto é aquela que ficou da última hora, quando ele viu a porta da eternidade se abrindo: acabou a luta, começou a festa. Diante disto vamos enxugar o pranto. FAZ ESCURO, MAS EU CANTO.

Revendo os livros e as cartas, achei uma encomenda que frei Estêvão me deu em 13 de março para eu levar para Vargem Grande. Na carta ao Vigário local, ele vinha contando da viagem que havia feito para aquele santuário em novembro. Passando em Vargem Grande, tinha assistido uma derrubada de boi brabo. Na ocasião havia feito retratos dos vaqueiros e agora desejava entregar uma foto a cada um deles. Seu pedido era que o Vigário localizasse os ditos vaqueiros. Nessa carta o nosso irmão conta da sua doença e da sua “cura milagrosa”. Ele pede aos vaqueiros que façam uma prece pela recuperação das forças. A carta é difícil para ler, prova do enorme esforço. Os retratos mostram os vaqueiros numa roda de meia-lua e Estêvão no meio deles, bem à vontade. Esta encomenda, eu vou entregar pessoalmente no local, quando eu chegar.

No dia 3 de maio vou rezar a MISSA DE MES na paróquia de Dellbruck. Confio em Deus que a gente venha se familiarizando  com presença viva do Estêvão „no céu e no Brasil“.

O abraço do irmão

frei Adolfo

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